Dissecando o World Press Photo, parte III

Eduardo Cintra Torres fala no Correio da Manhã sobre o World Press Photo, uma opinião a ter em conta:

A imagem trouxe à memória a foto que ganhou o mesmo prémio em 1997, captada por Houcine Zahouar em Bentalha, nos arredores da capital da Argélia e mostrando uma mulher no momento em que sofre a notícia de que os seus filhos foram chacinados por extremistas islâmicos.

As duas fotos assemelham-se. Primeiro, pelo tema: mostram casos humanos, concretos, de sofrimento resultante de conflitos político-religiosos em países muçulmanos. Segundo, pelas protagonistas: em cada uma, uma mulher. Na foto de 1997, a mulher que chama o nosso olhar desfalece perante a pior tragédia que pode acontecer a uma mãe. Na de 2011, cabe à mulher amparar o familiar sofredor.
Terceira semelhança: a beleza da composição. Quarta: o véu. Transmite, pelo menos aos olhos ocidentais, um carácter religioso às imagens. Através dele, ambas ganham intemporalidade: apesar de se saber o dia exacto em que foram captadas e a que acontecimentos elas se referem, estas imagens também são de sempre, remetem para o nosso DNA, como comentou alguém.
No Ocidente convocam também o DNA religioso: ambas as fotos se associam sem hesitação a imagens da representação da paixão de Cristo. A imagem de 1997 assemelha-se às representações de Maria desmaiando aos pés da cruz e amparada por Maria Madalena; essa semelhança levou muitos observadores em 1997 a chamar a esta foto "a madona de Bentalha", assim associando a iconografia cristã de Maria aos pés da cruz com a mãe muçulmana dos arredores de Argel. A imagem de 2011, como toda a imprensa referiu, aproxima-se das representações do momento da descida da cruz, em especial a Pietà de Miguel Ângelo no Vaticano. Esse momento não se encontra nos Evangelhos, mas a Pietà e a imagem agora premiada parecem dizer: poderia estar. As duas fotos de mulheres muçulmanas convocam o momento cristalizado no hino católico Stabat Mater, do século XIII. A foto de 2011 distingue-se pela invisibilidade dos dois rostos, um tapado pelo véu integral, outro escondendo-se nele, mas é essa mesma invisibilidade que acrescenta uma impressionante universalidade à imagem. Tal como a escultura de Miguel Ângelo faz do caso particular de Jesus Cristo e de Maria um exemplo universal, a foto no Iémene transcende o caso daqueles dois seres humanos, fazendo-o de nós todos.